Por Veja,
Um mestre da polêmica
Quarta-feira passada, jantando com autoridades
brasileiras na Granja do Ipê, residência oficial do chefe
do Gabinete Civil da Presidência da República, o ex-secretário
do Estado americano Henry Kissinger foi saudado pelo ministro João
Leitão de Abreu num discurso encastoado com finas citações
de Platão e Aristóteles. Como Platão e Aristóteles
não costumam freqüentar banquetes em Brasília, sua
presença foi logo identificada como sinal da chegada ao governo
de José Guilherme Merquior - diplomata de carreira, crítico
literário e ensaísta com treze livros publicados que, em
agosto, Leitão importou da embaixada brasileira em Montevidéu
para compor sua equipe no Palácio do Planalto. Ali, uma das incumbências
de Merquior é melhorar os discursos do governo.
O conselheiro Merquior, carioca de 40 anos,
é um personagem um tanto exótico na paisagem cultural brasileira
- e isso não só por ter passado boa parte de sua carreira
em postos tranqüilos e refinados, ideais para buquineiros, na Europa.
Sua maior singularidade é ter um temperamento polêmico numa
terra em que a crítica literária só costuma ser implacável
com best-sellers estrangeiros. Seu novo livro, "As Idéias e as
Formas", uma coleção dos artigos que escreveu para jornais
nos últimos três anos, lançado este mês pela
Editora Nova Fronteira, é um bom exemplo: lança farpas contra
marxistas e liberais, a psicanálise, modismos culturais e os costumes
da intelectualidade brasileira - que, a seu ver, está formando
uma república das letras de vocação despótica.
Ainda ficaram fora do livro dois momentos
extremos de sua contundência: a crítica em que acusa a professora
paulista Marilena Chauí de plagiar o filósofo francês
Claude Lefort e um ruidoso debate, pelos jornais, com o jornalista Paulo
Francis, cujo romance "Cabeça de Papel" Merquior anunciou como
treino para uma futura autobiografia intitulada "Cabeça de Vento".
Outro bom exemplo da desenvoltura com que Merquior fala de seus temas
preferidos é esta entrevista concedida a VEJA na semana passada.
VEJA - Há um ano,
o crítico Eduardo Portella deixou o Ministério da Educação
convencido de que este governo não é lugar para intelectuais.
O senhor acha que é?
MERQUIOR - Eu acho é que esse assunto merece ser tratado de forma desmitificadora. Cada vez que é discutido de maneira extremista, unilateralizada, o resultado é que se cria um mito. Na França, por exemplo, Régis Debray escreveu há dois anos um livro dizendo que intelectual, quando serve ao poder, é sempre como áulico ou absolutista. Mas veio o governo socialista de François Mitterrand e Debray está no Palácio Eliseu. A meu ver, uma atitude intelectualmente séria é não tratar com categorias maniqueístas: não se pode sacralizar a pureza do intelectual nem demonizar o poder do Estado, que não é um mal em si.
VEJA - Não há
no Brasil uma desconfiança recíproca entre o Estado e os
intelectuais?
MERQUIOR - É impressionante o número de intelectuais brasileiros que está dentro do Estado e faz de conta que não vê. O que está dando pretexto a tanta retórica ideológica sobre essa questão é apenas uma concepção vulgar de Estado, que só vê seu ramo executivo. Ora, essa não é uma concepção correta, nem jurídica, nem historicamente, nem para o Direito, nem para as ciências sociais. O Estado não é só o governo. Fica muito engraçado ver tantos intelectuais encastelados em posições universitárias, comportando-se como vestais críticas do poder do Estado. Estão fazendo tudo isso dentro do Estado e não sabem.
VEJA - O senhor antipatiza
com a sociedade civil?
MERQUIOR - Antipatizo com o mito da sociedade civil, que me parece ter duas origens. Uma, brota da esquerda. Até 1970, certamente durante todos os anos 60. O pensamento marxista ou marxistizante na América Latina, preso ao conceito leninista de imperialismo, que era uma espécie de projeção da luta de classes para a política internacional, fez o resgate ideológico do Estado.
VEJA - Resgate ideológico?
MERQUIOR - Isso mesmo. Pela tradição marxista, o Estado sempre foi sinônimo do mal, de instrumento de opressão. Mas, de repente, através da transposição de que eu falava, os marxistas, tomados de fervor nacionalista, passaram a ver o Estado como denominador comum das classes contra a opressão internacional. Isso foi na era leninista. Agora, os marxistas brasileiros estão em plena era de devoção ao pensador italiano Antonio Gramsci, o que num certo sentido implica a volta às matrizes marxistas que sempre viram no Estado um instrumento de opressão. Essa é a origem esquerdista do mito da sociedade civil.
VEJA - Existe a origem
direitista?
MERQUIOR - Claro. Os neoliberais brasileiros - que, aliás,
andam precisando de correção semântica, pois na verdade
são paleoliberais - juntaram-se à esquerda nessa festa de
rejeição do Estado. Porque num país como o nosso
o Estado é, ou pelo menos deve ser, um promotor de progresso, do
equilíbrio social. Mas os paleoliberais rejeitam essa função
do Estado e por isso se juntaram aos gramscianos na criação
do mito da sociedade civil, chamada a resolver os problemas brasileiros
sem a interferência do Estado ou contra ela. Isso é uma bobagem.
VEJA - Mas rendeu muito
debate.
MERQUIOR - Uma das características defeituosas do nosso
debate intelectual - quando ele ocorre, pois a outra característica
é que ele é muito subdesenvolvido e raramente ocorre - é
a tendência à imediata ideologização. Os problemas
são sempre apresentados de maneira abstrata, principista e apriorista.
Portanto, o coeficiente de análise empírica, de exame concreto
de realidades verificáveis, é muito pequeno. O inglês
Oscar Wilde dizia que os patrões falam de coisas e os criados de
pessoas. No debate político e intelectual brasileiro, há
muito pouca gente falando de coisas ou pessoas. Fala-se de noções
abstratas.
VEJA - Com que resultado?
MERQUIOR - O resultado, em outras palavras, é que se
restaurou no Brasil o estilo escolástico de debate. Uma das melhores
definições de escolástica como estilo retórico
diz que ela era uma maneira precisa de falar de coisas vagas. Para ver
como isso funciona na prática, basta acompanhar a discussão
sobre democracia: quase ninguém discute os mecanismos reais de
representação. E o resultado é que o debate, político
e intelectual, ficou muito chato no Brasil, pois a discussão sobre
coisas concretas é sempre muito mais remuneradora que a discussão
sobre princípios.
VEJA - Qual seria o remédio?
MERQUIOR - Pessoalmente, há muitos anos eu me espanto
com a irresponsabilidade de alguns intelectuais que tendem a minimizar,
em nome de uma vesga modernice, o problema do ensino básico, da
alfabetização, de dotar as pessoas com o instrumental mínimo
do pensamento articulado, que é a capacidade de falar e escrever
corretamente. Fala-se mal, escreve-se mal, pensa-se mal no Brasil.
VEJA - Quem escreve mal?
MERQUIOR - Os cientistas sociais, os críticos literários,
os políticos e, enfim, mas não por último,
os escritores.
VEJA - São problemas
de estilo?
MERQUIOR - Há problemas de estilo, sim. No caso dos
cientistas sociais, por exemplo, existe o
problema do jargão, uma
certa resistência a escrever em português. Mas, antes disso,
na base disso, há uma coisa pior: a dificuldade sintática,
a penúria vocabular, a insuficiência gramatical. Aqui estamos
falando de escrever errado mesmo.
VEJA - Escrever mal é
pecado grave para um cientista social?
MERQUIOR - Até o fim dos anos 40, os cientistas sociais
que tinham importância e prestígio no Brasil escreviam admiravelmente
bem - gente como Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre.
Eles renovaram o estilo literário das ciências sociais brasileiras,
que estava ainda muito preso ao modelo de Euclides da Cunha. Agora, o
estilo oficial dos cientistas sociais é o das teses universitárias.
VEJA - O senhor tem má
vontade para com teses?
MERQUIOR - Teses não são necessariamente feitas
para ser publicadas. Na Inglaterra, que tem excelentes costumes acadêmicos,
encontram-se intelectuais notáveis, reputadíssimos, que
aos 60 anos, com uma carreira acadêmica plenamente realizada, têm
dois ou três livros publicados. Mas são livros de verdade
VEJA - Cite livros malfeitos.
MERQUIOR - Eu lembro "A Ideologia da Cultura Brasileira", do
professor Carlos Guilherme Motta, como um livro bem ruim. Não por
ser propriamente mal escrito. Ele não tem distinção
literária, mas também não é especialmente
mal escrito. Ele é mal pensado, com uma arbitrariedade muito grande.
Por exemplo, ao analisar o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
Naquela fase, começo dos anos 60, não se pode negar que
o ISEB fosse um grupo de intelectuais de esquerda pensando o Brasil com
um certo grau de sofisticação filosófica, com leituras
existencialistas, orteguianas. Carlos Guilherme Motta tratou esse movimento
considerando apenas um artigo para jornal de Hélio Jaguaribe. O
livro é bairrista. Tudo gira em torno da Universidade de São
Paulo.
VEJA - Outro exemplo.
MERQUIOR - Cito um livro muito rico em informações,
único do gênero, de consulta obrigatória, que eu mesmo
tenho usado freqüentemente: "A História da Inteligência
Brasileira", de Wilson Martins. É muito mal estruturado. O método
de organizar autores por ordem cronológica é um equívoco.
O importante é a tendência literária, não a
cronologia.
VEJA - Na sua opinião,
quem escreve bem no Brasil?
MERQUIOR - O memorialista Pedro Nava escreve magnificamente.
Os poetas Armando Freitas Filho
e Mauro Gama, também. Há
uma recuperação dos padrões de elegância na
ensaística mais recente, em cientistas sociais, como Bolívar
Lamounier. Estou citando, é claro, as novidades.
VEJA - E entre os escritores
de vanguarda, algum nome merece destaque?
MERQUIOR - A vanguarda brasileira anda muito quieta, tão
quieta que não a estou notando, ou se dissolveu - e não
sou eu quem vai botar luto por isso. A última vanguarda fecunda
no Brasil foi a de 1922, a geração modernista.
VEJA - Não está
acontecendo nada de novo na cultura brasileira?
MERQUIOR - Literariamente, o único fenômeno que
noto é a febre do memorialismo, uma tendência tão
forte que já chegou até aos jovens, como o best-seller Fernando
Gabeira. Gabeira, aliás, escreve bem. Pelo menos, escreve com graça,
que é uma virtude que se exilou da literatura brasileira. Só
li dele o primeiro livro, "O Que É Isso, Companheiro?", mas chego
a me perguntar se uma parte do sucesso que vem fazendo não é
simplesmente porque escreve com graça.
VEJA - Como é o
intelectual brasileiro?
MERQUIOR - No Brasil, há uma intelectualidade, mas não
uma intelligentsia. A diferença entre uma coisa e outra é
a mesma que distingue o gênero da espécie. A intelligentsia
é um tipo de intelectualidade, um tipo cujo modelo histórico
foram os intelectuais da Europa oriental no século passado, sobretudo
no império czarista. O que a caracteriza é a separação
em que os intelectuais vivem em relação à sociedade.
São párias, até pela situação de sua
renda e seu status. Os intelectuais brasileiros mais radicais não
são párias de nossa sociedade, nem pela renda nem pelo status.
Se disserem que são, eu respondo com uma gargalhada. Eles se beneficiaram
do progresso econômico, subiram socialmente nos últimos anos
como o resto da classe média. Por isso, têm uma retórica
muito radical. Fingem que são uma intelligentsia. Mas, na prática,
se comportam como um setor do salariado, têm impulsos corporativistas.
VEJA - O senhor quer dizer
que os intelectuais são muito ciosos de seus interesses de classe?
MERQUIOR - Basta ver a prática da excomunhão
em meios universitários, como se cassam mandatos intelectuais no
Brasil. O AI-5 intelectual nunca foi revogado. É a classe se organizando
em corporação. É típica a maneira como se
reage no país à polêmica. Quando um intelectual no
Brasil se sente incomodado por um crítico, ele não contra-ataca
as idéias do crítico, ataca o próprio crítico.
Foi o que aconteceu comigo, na polêmica com a professora Marilena
Lefort...
VEJA - Quem?
MERQUIOR - Aliás, Marilena Chauí, que em seu
último livro psicografou trechos inteiros do francês Claude
Lefort. Quando eu denunciei isso em artigo, as pessoas que vieram em defesa
da Marilena procuraram desqualificar minha pessoa, a pretexto de que eu
trabalho para o governo. Eu me refiro a Maria Sylvia Carvalho Franco,
conhecida patrulheira ideológica paulista. Há exceções,
felizmente. Eu também critiquei Carlos Nelson Coutinho, porque
não me convenceu sua tentativa de provar que leninismo e democracia
são compatíveis. Ele entendeu que se tratava de uma discussão
de idéias. Respondeu com seus contra-argumentos marxistas. Quando
isso acontece, há polêmica. Do contrário, o que se
tem é um bom exemplo do clero intelectual agindo como seita. É
uma das características de toda seita é o puritanismo, a
intransigência no plano da conduta e o dogmatismo.
VEJA - Aonde esse comportamento
pode levar?
MERQUIOR - Está levando a uma grafocracia. Criticam-se
muito as várias cracias, mas não a grafocracia, termo cunhado
pelo marxista austríaco Karl Renner, depois da II Guerra, para
designar essa vocação moderna do intelectual para exercer
o poder através do que ensina ou escreve. O mal da grafocracia
é que, com ela, o humanismo deixa de ser um movimento intelectual
para se transformar numa ideologia, no sentido marxista da palavra, isto
é, um sistema que reflete os interesses de uma camada intelectual
que se comporta como clero.
VEJA - O filósofo
Claude Lévi-Strauss, depois de ensinar na USP, escreveu que no
Brasil todos querem ser eruditos, mas não têm a vocação
nem o mérito. O senhor se considera um erudito?
MERQUIOR - Como categoria neutra, sem dar à palavra
conotações de bem ou mal, admito que em alguns trabalhos
realizei um certo esforço de erudição. Mas a minha
preocupação com a erudição é instrumental,
quero equipar-me com ela para tratar de determinados problemas. Mas essa
conversa do erudito que leu o último livro é uma bobagem.
Ninguém leu o último livro. Essa época acabou na
Renascença, quando as grandes bibliotecas tinham 500 volumes. A
minha tem 7 000 volumes e não tem o último livro. Por outro
lado, a erudição também vai ganhando um ar pejorativo
serve para descartar certas idéias, um certo tipo de pensamento
a pretexto de que "são coisas de erudito". A insinuação
é de que existe outro saber, por graça infusa, que dispensa
seus iluminados do trabalho de serem eruditos. Basta estar na posição
"correta". Eu gostaria de saber quem dá esse atestado de dispensa.
VEJA - Entre a esquerda
e a direita, onde é que o senhor fica?
MERQUIOR - Alguém definiu admiravelmente bem as pessoas
de minha posição ideológica. Foi o polonês
Leszek Kolakowski, num texto que é uma pérola - "Como ser
conservador, liberal e socialista". No fundo da visão conservadora,
existe um elemento muito positivo, que consiste em acreditar que nem todos
os males humanos têm causas sociais, sendo portanto elimináveis
através de mudanças sociais. Do lado liberal, a idéia
básica, também verdadeira, é que a finalidade do
Estado é dar segurança, sem esclerosar a sociedade com um
sistema demasiado refratário à iniciativa individual. Enfim,
o socialismo tem de válida a idéia de que o pessimismo antropológico,
por trás da posição conservadora, não deve
ter o poder absolutista de evitar as reformas sociais citadas pelo reformismo
esclarecido.
VEJA - Trocando em miúdos...
MERQUIOR - ...Eu me sinto um pouco um iluminista. Tenho confiança
no progresso, acredito no progresso pela racionalidade. Essa crença
já foi característica dos socialistas, mas hoje os socialistas
mais sofisticados abandonaram seu compromisso histórico com o evolucionismo,
direita e esquerda ficaram muito parecidas nesse aspecto: o repúdio
aos tempos modernos. Adorno, que se proclamava neomarxista, chamou nossa
época de satânica. No século XVIII, quem acreditava
no progresso eram os filósofos. Atualmente, intelectual que acredita
no progresso é coisa rara. Hoje em dia, quem acredita no progresso,
felizmente, são as massas.
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1. Seja polido;
2. Preze pela ortografia e gramática da sua língua-mãe.